Sunday, October 31, 2010

Uma história... (cont. 14)

Por aquela altura, Nahn e Ahmad já se falavam com regularidade. Naquela noite de Setembro, como em outras anteriores, Ahmad percebia pela conversa que estava a ter com Nahn, quão triste ela se sentia. Não que desabafasse explicitamente, com detalhes e pormenores, mas era visivel a melancolia que sentia. Ahmad não sonhava sequer com o que motivava o estado de espirito de Nahn, nem sabia da sua vida...apenas sentia a tristeza em Nahn e tinha com ela uma empatia inexplicável.
A conversa foi-se desenrolando e o interesse de ambos aumentava a cada palavra. Ahmad sentia apenas uma enorme vontade de animar Nahn, de a fazer ficar feliz, e Nahn parecia estar a alimentar-se dessa força que Ahmad lhe transmitia, como se precisasse que alguém lhe mostrasse um raio de esperança. Nahn era um pequeno barco prestes a naufragar e Ahmad parecia-lhe o porto de abrigo que a poderia salvar...
Ao saber que Nahn não havia sido convidada para a celebração da vindima, e acreditando que uma festa era o que ela precisava para desanuviar a cabeça, Ahmad não esperou e convidou-a para ir consigo. Nahn não se fez rogada e logo aceitou o convite, enchendo-se de esperanças de que uma noite entre amigos e repleta de diversão fosse a resposta ás suas preces. Nahn estava entusiasmada, Ahmad estava feliz e tudo parecia convergir para um momento unico.
Mal sabia Ahmad, a importância deste momento e como iria ser marcante e decisivo na sua vida...e, quem sabe, na de Nahn também.

Monday, October 25, 2010

Uma história... (cont. 13)

Só a voz de Amoni os acordou do seu transe. Ressoando por três vezes, fez estremecer as paredes e deixou Nahn e Ahmad embaraçados. Amoni tratou logo de os apresentar, algo que pareceu completamente descabido e desnecessário...naqueles minutos em que o tempo parou enquanto se olhavam, ambos leram as suas histórias nos olhos um do outro.
Nem um nem outro sabiam explicar muito bem o que tinha acontecido...apenas sentiram que algo de diferente havia no mundo...algo de muito especial os havia ligado naquele momento, e não ficaria por ali. Como se de repente todas as rodas de uma engrenagem gigante tivessem sido postas em movimento.
Amoni conhecia Nahn há já alguns anos, mas nunca lhe passara pela cabeça proporcionar que ambos se conhecessem, não só porque na sua ideia nunca se lembrou mas também porque Nahn não estava sozinha. Mas a vida tem formas misteriosas de se desenrolar e tudo se sucedeu da forma mais espontânea e inesperada possível.
Apesar de se terem conhecido e de se cruzarem ocasionalmente, os seus encontros nunca passaram de momentos casuais e efémeros. Todavia, a ligação que os uniu a partir daquele instante determinou que a pouco e pouco se fossem conhecendo e a curiosidade de se conhecerem ainda melhor fosse aumentando.
Por ocasião da festa das colheitas, todos andavam atarefados com os preparativos e um acontecimento especial viria a ter lugar para celebrar uma vindima em particular. Amoni ficou encarregue de organizar o evento e, entre muitos outros, também Ahmad foi convidado.
Nos ultimos tempos, Nahn estava a atravessar uma fase menos boa da sua vida, sentindo-se triste e, invariavelmente, sem saber porquê. Andava desanimada e desalentada, sentia-se desmotivada com o trabalho e não tinha sequer vontade de sair de casa. Sentia-se só e a unica vontade que tinha era de isolar-se. Somente esperava que os dias se passassem, uns a seguir aos outros.
Mas a vida tem a incessante capacidade de nos supreender...e é quando menos acreditamos nisso, precisamente quando menos esperamos, que a magia surge e nos maravilha, como a uma criança diante de uma joaninha pela primeira vez.

Friday, October 22, 2010

Uma história... (cont. 12)

Ahmad já se encontrava em Al-Beshtu havia alguns meses, quando um dia saiu com Amoni. Estava um dia quente e Amoni tinha que ir ao Hedon, onde trabalhava, no centro da aldeia, para tratar de um assunto.
Ahmad, que já estava familiarizado com quem ali trabalhava, ficou na entrada, conversando, enquanto Amoni subiu. Apesar de já as conhecer, Ahmad não tinha qualquer intimidade com estas pessoas, pelo que se falou de tudo o que havia de trivial e circunstancial. Mesmo sendo uma pessoa facilmente sociável, este tipo de conversas dificilmente lhe prendiam a atenção por muito tempo. No entanto, a educação de Ahmad nunca em momento algum lhe permitiria demonstrar desinteresse.
Havia algo no Hedon, no ambiente, na arquitectura, na decoração, que transmitia a Ahmad uma sensação tranquilizante de leveza e bem-estar. Deliciava-se a percorrer o olhar pelas paredes, janelas e quadros, pelos mosaicos de mármore no chão e pelos tectos brancos. Tudo naquele local transpirava equilibrio e serenidade. E, enquanto o seu espirito se deixava invadir por este ambiente, os seus olhos cruzaram-se com os de Nahn e ambos fixaram-se mutuamente imobilizados no tempo.

Sunday, October 17, 2010

Uma história... (cont. 11)

Foi no meio dos tempos frios que Ahmad chegou à aldeia onde Nahn vivia. Depois de uma longa viagem, através de caminhos duros e locais inóspitos, do desconforto do isolamento e da dureza das planícies agrestes, Ahmad pisou território amigável.
Um caminho como o que percorreu, depois de tantos outros o terem percorrido e antes de outros tantos o virem a fazer, dificilmente se faz com um sorriso na cara. Mas, Ahmad há muito percebeu que os caminhos que escolhemos têm sempre paisagens bonitas e outras nem tanto. Aprendeu a aceitar as menos bonitas como necessárias para melhor apreciar as maravilhas das mais belas...e que é muito mais fácil encarar as coisas com um sorriso na cara do que com a testa franzida.
A chegada a esta aldeia foi como uma recompensa para Ahmad, pelas dificuldades que encontrara e por ter conseguido superá-las. Nesta aldeia, as pessoas eram amistosas e hospitaleiras e depressa fizeram com que se sentisse acolhido e integrado, como se de um deles se tratasse.
Desde logo foi convidado a participar nas festas e acontecimentos mais importantes, foi apresentado a todos os habitantes, foi levado aos locais sagrados e a visitar os santuários naturais, alguns dos quais eram dos mais belos que já conhecera.
Não demorou muito a que fosse apresentado às familias de alguns dos seus novos amigos e ser tão bem recebido como qualquer um deles. Ahmad gostava de fazer amigos, gostava de conhecer novas pessoas e novas filosofias de vida e esta aldeia pareceu-lhe um oásis no meio do deserto. Sentia-se como se estivesse na sua própria aldeia...

Sunday, October 10, 2010

Uma história... (cont. 10)

Ahmad nasceu nas Terras Longínquas, delas herdou a temperatura do seu sangue. Do pai recebeu a faceta racional, da mãe esculpiu-se o lado emocional.
Nasceu poeta de coração, sem saber escrever, um sonhador destemido que nunca hesitou em levar longe o seu eterno desejo de ser feliz. Nem mesmo ante a frieza da realidade deixou que se apagasse o fogo que lhe aquece a alma.
Desde que a sua personalidade se começou a definir, sempre sentiu um conflito interior entre duas faces de uma mesma moeda. De um lado, a coroa racional, a face pensadora, analitica e cautelosa; do outro, a pintura emocional, a esfinge contemplativa, sensível e impetuosa. Do dia em que nasceu, herdou o signo e o ascendente, simbolos contraditórios de uma constante procura do equilibrio perfeito entre terra e fogo. Se por um lado não tinha receio de expôr o coração, por outro tinha o escudo que o protegia.
Ahmad era um homem de paixões e sensações. De sensações, porque gostava de sentir...tudo. Uma criança curiosa e entusiasmada por tudo o que o fizesse sentir. E sentia tudo com uma extrema intensidade, apreciando cada momento como se o soubesse unico e irrepetível. De paixões, porque em tudo o que fazia tinha de se empenhar de alma e coração, como se a tarefa mais insignificante fosse capaz de mudar o Mundo.
Ahmad era provavelmente o maior admirador da Humanidade e das pessoas. Tinha uma visão completamente romântica dos humanos, preferindo olhar para eles como uma criação divina, plena de sentimentos, emoções e histórias, esquecendo as atrocidades de que são capazes.
Das muitas coisas que realmente valorizava na vida, havia duas com um valor muito especial e, embora as vivesse de forma diferente, estavam intimamente inter-ligadas.
Uma delas era sentir as pessoas.

Thursday, October 07, 2010

Uma história... (cont. 9) ( أحمد إبن فضلان إبن ألعباس إبن رشيد إبن حماد)

Tão desligado estava Basahtr de Nahn, tão pouco valor tinha ela para ele, tão frágil era o que os unia, que Basahtr nem se apercebeu da distância que se criou e cresceu entre eles.
Nahn continuou a fazer a sua vida, e distraídamente foi vivendo cada vez mais como se não tivesse ninguém. Os seus próprios amigos, a pouco e pouco, foram-se habituando a vê-la e a estar com ela sem a presença de Basahtr. Lentamente, e sem o ser, foi-se tornando uma imagem enevoada, como se se tratasse do passado de Nahn.
A verdade, é que Nahn nunca se sentiu parte da vida de Basahtr. Como ela própria dizia, era como um acessório, uma qualquer peça decorativa de somenos importância que Basahtr levava consigo. Como um guarda-chuva ou um casaco que penduramos no bengaleiro ou atiramos para cima da cama quando chegamos a qualquer sitio, e do qual só nos lembramos quando voltamos a sair.
Quando estava com os seus amigos, sem Basahtr, Nahn sentia-se integrada num grupo, sentia-se parte do conjunto, uma peça tão importante e fundamental como qualquer um dos outros. Mas, mesmo assim, faltava qualquer coisa na sua vida...qualquer coisa que os seus amigos não lhe podiam dar.
O Destino, para quem acredita nele, tem uma maneira curiosa, engraçada até, de conjugar uma infinidade de acontecimentos aparentemente isolados e sem qualquer ligação entre si quando observados individualmente, que resultam numa série de outros acontecimentos absolutamente admiráveis e surpreendentes. Tanto mais admiráveis e surpreendentes, quanto parecem depender exclusivamente, ou quase pelo menos, da vontade de cada um. São os caminhos que cada um dos 6.000.000.000 de habitantes deste planeta escolhe, e a interferência que essa escolha tem directa ou indirectamente nos caminhos dos que nos rodeiam, que condicionam a nossa vida.
Era assim que Ahmad ibn Fadlān ibn al-Abbās ibn Rašīd ibn Hammād via as coisas. Acreditava que havia marcos, de maior ou menor importância, na sua vida pelos quais iria inevitavelmente passar. Mas cabia-lhe a ele escolher os caminhos por onde seguiria e que, apesar de determinarem a ordem pela qual iria passar por esses marcos, o levariam forçosamente a passar por todos eles.
E foi precisamente assim, por conjugação de Destino e livre-arbítrio, que a vida de Ahmad acabou por se cruzar com a de Nahn.

Monday, October 04, 2010

Uma história... (cont. 8)

De racional, Nahn não tinha nada. Não pensava na vida, não se preocupava com o futuro, não pesava as suas decisões antes de as tomar. Vivia ao sabor dos seus desejos, um dia de cada vez, momento a momento, pouco pensando no resto.
Mas Nahn sentia-se....sentia-se a si própria e não gostava de se sentir triste. O que mais queria era sentir-se feliz, tranquila e bem com a vida, todos os dias. E começou a aperceber-se que Basahtr não a completava. A relação desprendida que tinham deixava um vazio por preencher que lhe trazia alguma melancolia. E as ausências constantes e prolongadas de Basahtr só faziam com que Nahn se desligasse cada vez mais...Nahn costumava dizer que não sabia lidar com a saudade. E, como em tantas outras situações, quando Nahn sentia saudade, afastava do seu coração os sentimentos que a prendiam às pessoas. De uma forma fria e silenciosa, esquecia o que estas representavam na sua vida e arrumava-as como fotos num qualquer album de recordações.
E assim fez com Basahtr. Gradualmente, quase sem se dar conta, foi perdendo o pouco que sentia pelo estudante. Os telefonemas diários tornaram-se semanais e, em pouco, foram substituidos por mensagens ocasionais. Também o seu conteúdo se foi perdendo, com conversas cada vez mais circunstanciais e vazias de forma, e mesmo estas deviam a sua débil existência meramente ao conformismo de ambos e à incapacidade de assumirem frontalmente que o que havia entre eles se havia esbatido como as cores das paredes de uma casa há muito abandonada.

Saturday, October 02, 2010

Uma história... (cont. 7)

Basahtr era uma pessoa tão ausente quando se encontrava no estrangeiro como quando estava em casa. Não sabia o que era sentir o calor de uma paixão, o frio gélido de uma recusa ou o ardor acutilante da raiva. Passava pela alegria imensa de atingir um objectivo na vida com a mesma indiferença com que ficava sem ver o seu melhor amigo durante os meses em que estava fora. Para ele, os sentimentos eram como uma cultura desconhecida de um povo perdido no meio de uma selva inexplorada num qualquer lugar remoto e distante. Não sabia sequer da sua existência e, mesmo que lhe falassem deles, isso não despertava qualquer interesse na sua mente intelectual. Para ele, esse tema era tão interessante como um grão de areia no meio do deserto.
Havia somente duas coisas que Basahtr prezava na vida...os infindáveis estudos, batalhando por alcançar sempre mais um grau, e os encontros ocasionais com os amigos, recheados de insipiência e futilidades inuteis, sempre envoltos na espessa neblina libertada pelos incontáveis charros que fumavam. Nahn, que não partilhava nenhum destes interesses, ficava sempre à margem, excluindo-se a si mesma destes momentos com que não tinha qualquer afinidade.
Mesmo em outras ocasiões, que não envolviam ervas mágicas ou os seus amigos, a presença de Nahn era completamente inócua para Basahtr que, além desses dois interesses (o estudo e os encontros alienantes com os amigos), não nutria quaisquer outras motivações por mais nada na vida. Esses eram os dois pilares da sua vida e Nahn era apenas uma figurante que o acaso tinha colocado na sua peça de teatro.
Nahn não era alheia à sua irrelevância na vida de Basahtr...tinha consciência de ser apenas uma letra nos livros de Basahtr. Apenas isso não a incomodava, porque lhe permitia levar a sua vida sem ter que dar satisfações a ninguém.

Friday, October 01, 2010

Uma história... (cont. 6)

Basahtr era um estudante, com uma inteligência acima da média e que desde cedo decidiu aplicar as suas capacidades na investigação catedrática. Era um rapaz sossegado que, apesar de se destacar nos estudos, em tudo o mais diluia-se anónimamente na amálgama de gente dos meios por onde se movimentava. Era bem possível, quase provável mesmo, que passasse uma noite inteira no mesmo sitio sem que ninguém, excepto os seus amigos, desse por ele. Tinha uma personalidade morna, sem chama e sem paixões, e dedicou-se aos livros, aos manuais e ás sebentas por uma convicção racional e intelectual completamente desprovida de emoção.
E talvez tenha sido esta amenidade e falta de temperamento que captou a atenção de Nahn. Depois de uma relação tão tempestuosa, com afectos levados ao extremo do ciúme obsessivo, o que precisava era de alguém que nada lhe exigisse. De facto, a sua relação com Basahtr era extremamente libertadora. Na sua inaptidão emocional, Basahtr não proporcionava carinho, amor ou dedicação, mas também não o exigia de Nahn. O total desprendimento com que ambos conviviam, permitia que levassem uma vida sem compromissos, obrigações ou responsabilidades um para com o outro, o que era extremamente conveniente para Nahn já que, assim, apenas teria que dar o que lhe apetecesse, quando lhe apetecesse. Se o desenrolar do dia induzisse a que estivessem juntos, porque de sua iniciativa pouco se esforçavam para que tal acontecesse, estariam juntos. Se assim não fosse, nenhum sentiria a falta do outro.
O tempo foi passando, e a relação lá se foi mantendo convenientemente estável. Devido à sua actividade académica, o trabalho de investigação levava a que Basahtr tivesse que se deslocar frequentemente para o estrangeiro, onde passava longas temporadas. Nesses compassos de tempo, em que Nahn ficava no país natal, ia-se dedicando a estar com os amigos, ao seu próprio trabalho e à sua familia. Na realidade, pouco mudava na sua rotina com a ausência de Basahtr, e nos primeiros tempos estas temporadas a sós reforçavam o sentimento de liberdade que Nahn tanto começara a valorizar depois da relação com Nethiel.
No entanto, inesperada e subtilmente, pouco a pouco Nahn foi começando a ter um sentimento estranho...no meio desta relação, que tão ciosamente foi sido mantida liberal, algo começou a causar-lhe desconforto. Não sabia muito bem o que era, nem conseguia sequer descrever esse sentimento...e tão pouco identificar o que o estava a causar. Tendo o que queria e como queria, sentia-se inquieta...algo lhe estava a trazer alguma tristeza e não sabia explicar o que era.