Friday, August 31, 2007

Acorde-me quando aterrarmos!

De cada vez que ando de avião, é sempre como se fosse a primeira vez. Fico de tal forma feliz e maravilhado que os meus olhos devem brilhar como um farol em alto mar numa noite de pleno breu! De tal forma que me habituei a pedir à hospedeira que me acorde quando aterrarmos.
Assim que me sento no meu lugar, sempre à janela, desligo completamente do mundo real. A partir desse momento não quero mais saber dos outros passageiros e da vida a bordo. Ao longo da viagem, sempre com os olhos postos do lado de fora da janela, inebrio-me com as paisagens fantásticas que sobrevoamos, delicio-me com o pairar no meio das nuvens, com as cidades, vilas e aldeias que cá de cima parecem formigueiros. Normalmente, nem da turbulência me apercebo.
Nesta viagem, a distraída hospedeira deve ter-se esquecido do que lhe pedi e, quando todos sairam do avião, continuei embrenhado na minha própria viagem.
Acordo então no meio das equipas de limpeza e manutenção, com um dos membros que me toca no ombro, acordando-me, e me informa que aquela viagem já terminou há algum tempo. Tenho que descer - do avião, entenda-se - e regressar ao aeroporto, seguindo para o meu destino local ou apanhando outro vôo.
Escolho a segunda hipótese, pois nunca fui homem de ficar em terra...

Deixem-me ser...

Fosse eu escritor e seria um grande escritor. Ou pelo menos um escritor grande, tal a quantidade de inícios e finais que já escrevi nestes livros. Cada um escrito com uma caneta diferente, com uma letra personalizada, com um enredo mais amadurecido.
Em cada livro que escrevo, procuro ser sempre o mais fiável possível à verdadeira personalidade de cada personagem e muito feliz me sinto por já ter conhecido tantos e tão distintos uns dos outros.
Não quero ser hipócrita e, contrariamente ao que seria de esperar, não são os finais, o dar a obra por acabada que me dá mais prazer. Nem mesmo o início, em que começamos a conhecer os personagens, o contexto, o enredo. É do desenvolver da história que mais gosto.
De facto, é depois de conhecer todos os intervenientes, pessoas, lugares, experiências, que me começo a envolver na trama. É nesse momento que passo de autor a personagem, tornando-me parte das palavras que vão sendo escritas. E vivo cada uma das situações como se fossem minhas...que na verdade até são a partir do momento em que faço parte da narrativa.
Talvez por isso me custam tanto os finais. Porque apesar de saber que depois escreverei mais um livro, não me quero afastar do actual, não quero deixar de conviver e partilhar desta história. Porque sou um homem do presente, não do futuro nem do passado, não me consolam os sucessos do futuro (como garantia de felicidade) nem os êxitos do passado (como prova de evolução) pelo simples facto de que o que era já foi e o que vai ser ainda não é.
Assim, até escrever um novo livro, recuso-me a viver saudades do passado ou expectativas do futuro. Regozijo-me, sim, pelos bons momentos da história actual e permito-me a tristeza de ter que a finalizar...de uma vez por todas.
Até à próxima história reservo-me, portanto, o direito a ficar triste com o término desta!

Thursday, August 30, 2007

A Praia dos Árabes

Do varandim, virado a poente, observa-se todo o porto. Um ancoradouro onde atracam todo o tipo de embarcações, de pequenos botes com motor fora de bordo a magnificentes lanchas, iates e veleiros provenientes dos mais diversos pontos do mundo.
Á semelhança dessas naus, também as pessoas que por aqui andam são das mais variadas estirpes, raças e povos, classes sociais e até religiões. É um local que se destaca mais pelos elementos materiais aqui "estacionados" do que pela beleza natural ou arquitectónica. Característica, aliás, que se estende à grande maioria das pessoas que por aqui se passeiam, a quem nem a paisagem ajuda neste aspecto.
Durante o dia, goza-se de um sol agradável, que traz boas cores aos edificios aqui construidos, aos barcos mais bonitos e até aos transeuntes que assim beneficiam de uma melhoramento artificial da sua imagem natural. À noite, são os néons e letreiros coloridos que alegram o passeio.
Mas esta está longe de ser a praia mais bonita. Há na região praias com uma outra luz, uma outra vida, uma outra cor. Não muito longe daqui deita-se um areal onde e por quem me apaixonei para a vida. Nunca conheci sentimento de tanta tranquilidade, paz de espirito e familiaridade como ali.
É uma pequena aldeia, não terá mais que 8 ou 9Km2 e 400 habitantes indígenas. Tudo o resto são aves migratórias. Logo na primeira vez que visitei este local fiquei em transe com o encantamento, uma espécie de misticismo e "sentir-me em casa" que me inebriaram. Porque, apesar de contar com os forasteiros para sobreviver, parece manter uma pureza e genuinidade impossíveis de encontrar por estes lados, onde tudo e todos se renderam aos estrangeirismos.
Vive-se um ambiente familiar em que todos se conhecem, naturais e migrantes históricos que desde sempre para aqui acorreram. E apesar da invasão imobiliária, mantém ainda muita da traça original de aldeia piscatória, vestida com um requinte pouco próprio destas artes.
Não é, absolutamente, a escrita que reflecte com objectividade esta minha saudade nem traduz este sentimento, pois só quem lá esteve sabe do que falo.
Talvez por isso não vos convide a visitá-la...por ter medo que se apaixonem como eu e com isso me roubem um pouco daquele lugar. Sim, sou egoista...não o quero para mais ninguém senão para mim e para os que já lá estavam!.

Tuesday, August 28, 2007

Light Aziz, Light!!

Em alturas menos boas da nossa vida encontramos sempre bodes expiatórios. É muito fácil apontar o dedo aos responsáveis pela nossa falta de sorte: as outras pessoas, a própria vida, alguém que nos rogou uma praga...até Deus por se esquecer de nós.
Depois, toda a gente nos diz para relativizarmos as coisas, para aguentar a onda, que melhores dias virão, que ainda nos vamos rir da situação, até mesmo que iremos aprender uma grande lição de vida.
Eu cheguei mesmo a acreditar que essa tranquilidade, essa capacidade de aceitar os problemas e enfrentá-los sem deixar que me derrubassem viria com a idade. E, com o tempo a passar, nunca soube que idade era essa.
Hoje em dia olho para trás na minha vida e gosto do que vejo. É com alegria que me considero uma pessoa equilibrada e forte, com discernimento para me autoanalisar e perceber os erros que cometo, com suficiente espirito de critica para me zangar comigo mesmo, mas acima de tudo por (perdoem-me o narcisismo) gostar mesmo muito de mim próprio e do como sou.
E porque é que digo isto? Porque quando olho para mim próprio (instrospecção também é importante para não falarmos mal só dos outros :p) gosto de ver como sou superficial e como é tão simples ficar feliz!
Já escrevi várias vezes como é benéfico conseguirmos extrair alegria das coisinhas mais pequenas e mais insípidas da nossa vida. E é com grande satisfação que vejo que o faço sem o mínimo esforço, insconsciente, natural e expontaneamente.
Traz-me uma profunda felicidade o cheiro a pão quente nas manhãs de Verão e a terra molhada no Inverno. Fico em extâse por no Verão poder andar com pouca roupa e por no Inverno ser mais fácil andarmos bem vestidos. Fico superfeliz com a felicidade e sucesso dos outros como se fossem meus (não sou o Ghandi, mas é verdade). Gosto de ver as crianças (dos outros) a rir descontroladamente. E fico tão feliz quando me dizem que sou interessante, bonito, especial, bom amigo ou o que for como em dizer todas essas coisas aos outros.
Mas acima de tudo, faz-me muito feliz olhar para mim e gostar de mim...gostar mesmo muito de mim com todas as virtudes e defeitos (que não são poucos) que tenho. E é isso que me permite passar por qualquer dificuldade na vida com um sorriso nos lábios e pensamento positivo! Porque sou feliz e gosto de ver os outros felizes!

Sunday, August 26, 2007

Uma história

William era um bom rapaz. Tranquilo e calmo, esforçava-se sempre pelo bem-estar dos outros. Já o conheço há uns bons anos e sempre o chateei por se preocupar mais com os outros do que consigo próprio. Inúmeras vezes o vi engolir sapos só para evitar chatear-se com alguém.
Uma das coisas que mais tive dificuldade em compreender nele, era o hábito constante de procurar justificações e motivos para o que os outros faziam ou diziam, e que o incomodavam, tentando sempre relativizar e minimizar a gravidade desses actos ou palavras.
Reconheço nele uma infindável capacidade de sacríficio para que as coisas dêem certo. É capaz de tudo quando acredita numa coisa. Ia até ao fim do mundo, se fosse preciso, pelos seus ideais.
Um dia apaixonou-se...por uma editora de moda. Letícia era bem mais nova do que ele. Tinha terminado o curso e estava no seu primeiro ano de trabalho, ansiosa por iniciar a sua carreira e começar a atingir os seus objectivos de vida. O primeiro deles era comprar a sua própria casa, um espaço que pudesse ser só seu, onde se refugiaria da turbulência da metrópole e da vida. Apesar de viver numa casa grande, com espaço para todos, sentia-se encurralada pelas solicitações familiares. Letícia era muito ciosa do seu espaço e da sua privacidade e sentia o seu mundo muito limitado pelas exigências dos outros. Era uma pessoa dedicada, entregando-se de corpo e alma às causas em que acreditava. Muitas vezes, contra ventos e marés, sem o apoio de ninguém, embrenhou-se em lutas que todos davam por perdidas, vencendo-as graças à sua determinação.
Começaram a namorar numa noite de verão, depois de William ter feito um cerco incansável durante toda a festa. Letícia quis apaixonar-se por William e foi assim que tudo começou. Não foi uma história de principes e princesas, nem o conto de fadas com que todos sonhamos, envolto em magia e fantasia, mas Letícia quis apaixonar-se.
William queria que o sonho se desenrolasse passo a passo, tranquilamente. Letícia esperava o sentimento arrebatador que a convencesse que ele era o tal. William queria viver o sonho. Letícia queria sonhar a vida. William acreditava. Letícia queria acreditar. William trazia um sonho no olhar. Letícia não foi capaz de vivê-lo.
A vida não é um sonho, e como realidade que é implica que alcançarmos os nossos objectivos nos obrigue a tomar decisões e a fazer escolhas entre o que queremos e o que não podemos ter. E nem sempre estamos dispostos a abdicar de umas coisas para termos outras. Tudo é relativo...tudo é mais ou menos importante consoante o momento. O que hoje é essencial amanhã não é, e vice-versa. O que hoje é prioritário, amanhã é acessório.
William continua a acreditar no seu sonho...Letícia continua a procurar o seu ideal.

Saturday, August 25, 2007

O menino que o Vento trouxe

Nesta seara costuma soprar uma brisa amena com cheiro a feno, no final das tardes de verão.
À distância vislumbro a silhueta de um menino que vem a descer a colina por entre o sorgo que balança ao ritmo do vento. Os pés descalços vêm calcando o chão irregular de terra macia transpirando o calor da tarde.
Ao aproximar-se, olha-me directamente nos olhos, perscutando os meus pensamentos como que avaliando a minha índole. Parecendo confiar, pousa a sacola no chão e senta-se a meu lado. De dentro, tira um bocado de pão que vai mordiscando acompanhado de uns goles de água, enquanto olha profunda e atentamente o horizonte. Durante estes largos momentos nada diz, ora olhando o infinito ora olhando-me a mim.
Depois de terminar o lanche, pergunta-me:
- Para onde vais?
- A todo o lado e a sitio nenhum. Venho seguindo a estrada e parei aqui para admirar este sitio enquanto descanso.
- Não tens destino, portanto?
- Sim...é mais ou menos isso...
- E de onde vens?
- De todo o lado e de sitio nenhum...
- Não tens raízes, portanto?
- Sim...é mais ou menos isso...
- Vens sozinho?
- Sim.
- Sou como tu...um viajante. Mas tenho raízes...e tenho destino. Todos temos, mesmo que em alguma altura os deixemos de ver.
- Como assim?
- Algures nas nossas caminhadas, encontramo-nos tão distantes da nossa origem como do nosso destino que deixamos de os ver.
- E nessas alturas, como fazemos para não nos perdermos?
- Cada um de nós, nesses períodos de tempo em que deixamos de ver a origem e o destino da nossa viagem, encontra os seus pontos de referência. Sinais que nos indicam se nos mantemos na rota ou se nos afastamos dela!
- E como encontrar novos pontos de referência? - Perguntei eu aquele menino que parecia ter todas as respostas.
- Ao longo da minha viagem tenho guardado nesta sacola tudo aquilo que de alguma forma se distingue do resto. Depois, num mapa que vou desenhando à medida que avanço no meu caminho, marco os sitios onde os encontro. Consigo, assim, manter sempre uma trajectória clara e, se for preciso voltar atrás, consigo sempre reencontrar o meu caminho.
- E que guardas tu na sacola?
Olhou-me de lado, meio desconfiado. Depois puxou a sacola, ajeitou-a e abriu-a. Lá dentro vi muitos pequenos pontos de luz, brilhantes como um céu estrelado.
- Mas isso são... - retorqui.
- São... - Interrompeu-me como se quisesse impedir-me de pronunciar o resto da frase - E tu também tens os teus. É apenas uma questão de os guardares.
Aquele garoto, que vestia apenas umas jardineiras coçadas sobre a pele encardida pelo pó, parecia saber muito mais do que a idade lhe permitiria. A segurança com que me falava transmitia uma confiança própria de quem tem uma experiência de vida longa e variada. Falava como que suportado num vasto conhecimento adquirido ao longo de dezenas de anos de vida passados a viajar.
Ofereceu-me um naco de pão e água e recostou-se numa pedra. Inspirou profundamente e olhou novamente o horizonte. Por momentos não disse nada. Pousou os braços no chão e agarrou um punhado de terra, levando-a ao nariz. Ao cheirá-la, perguntou-me:
- Sabes como chamam a este vento quente que aqui sopra ao final da tarde?
- Não.
- Zéfiro...Diz-se que vem percorrendo as planícies desde o deserto e que se o escutarmos atentamente conseguimos ouvir as vozes daqueles por quem passou.
Calei-me e não escutando nada mais do que a folhagem empurrada pela brisa, perguntei:
- Consegues ouvir alguma coisa?
- Schhhhh... - disse-me, fechando os olhos - não é com os ouvidos que deves escutar.
Segui-o, fechando os olhos, e fiquei em silêncio. Comecei a ouvir um pequeno burburinho, como que de vozes tartamudeando, que a pouco e pouco se foi tornando mais nítido. E comecei então a perceber conversas soltas entre homens e mulheres, o ruído de crianças a brincar e o eco destes sons que ressoavam nas minhas orelhas. Eram diálogos absolutamente normais, conversas de rua como pessoas que se encontram e não querem ficar por um simples olá.
Entretanto, o menino tocou-me na mão e os murmúrios começaram a desvanecer-se. Perguntou-me então:
- O que ouviste?
- A Vida...O Mundo... - respondi-lhe.
- Parece que a lenda do Zéfiro tem algum fundamento, então. Na realidade, nem sempre os cinco sentidos são os que nos permitem perceber melhor...
- Sim...
Colocou a mão dentro da sacola e do seu interior retirou outra sacola exactamente igual, depositando-a nas minhas mãos.
- A ti falta-te apenas a sacola para os guardares. Tudo o resto de que precisas já o tens dentro de ti. Guarda dentro da sacola tudo o que é importante para ti para que não percas nada.
Estendendo-me a mão, desejou-me boa viagem e afastou-se lentamente, com o olhar posto no sol que se deitava no horizonte. Ainda o observei por um longo tempo, enquanto a sua silhueta se tornava mais pequena.
Inspirei uma vez mais o vento quente que sopra na seara. E foi a ultima vez que vi esse menino...

Monday, August 13, 2007

O Paciente Português - Dia 0

Mesmo aqui, dentro da tenda, sopra uma brisa quente...dizem os beduínos que o chá quente ajuda a suportar o calor, e crendo nisso vou sorvendo a infusão de hortelã que me deram.
Sentado à porta, olho o deserto deitado à minha frente que ainda ferve coberto pelo sol vermelho pousado sobre a linha do horizonte. Os milhões de grãos de areia já bocejam, preparando-se para dormir e eu, dormente com os 49ºC que ainda se fazem sentir debaixo da lona cor de laranja, traço a rota que me levará até Njhouir. Os camelos já estão alimentados, os alforges arrumados e os meus companheiros de viagem estão de volta do fogo a cozinhar uma espécie de pão que irá acompanhar o carneiro guisado. Para acompanhar o jantar, nada mais...por aqui não há o costume de acompanhar a carne com arroz ou batata (até porque por aqui não se cultivam esses legumes).
O sol entretanto já se cansou de esperar, e seguiu para casa. A lua aproveitou, tomou o seu lugar e sobe agora numa coberta pontilhada de brilhantes, como focos que iluminam as bermas de uma estrada.
A refeição está pronta, e comer com os tuaregues sempre me transmitiu uma enorme sensação de segurança e sentido de partilha. Aqui não há individuos...apenas um conjunto uniforme de corpos que sustentam uma pequena sociedade. O que é de um é de todos, e todos trabalham para um fim único: viver no deserto.
Nesta floresta estéril, o guisado de borrego é uma iguaria. Nos dias que se seguem iremos comer apenas pão, água e tâmaras que antes da partida foram secas ao sol para que se conservem. De qualquer maneira, não precisamos de mais nada.
Após a refeição, mantemo-nos à volta da fogueira que agora se justifica pela baixa temperatura que a noite trás. E á volta dela, contam-se aventuras, viagens e pessoas que cada um viveu, ensinando-nos uns aos outros.
É hora de descansar...amanhã temos um bom caminho a percorrer.