Saturday, August 25, 2007

O menino que o Vento trouxe

Nesta seara costuma soprar uma brisa amena com cheiro a feno, no final das tardes de verão.
À distância vislumbro a silhueta de um menino que vem a descer a colina por entre o sorgo que balança ao ritmo do vento. Os pés descalços vêm calcando o chão irregular de terra macia transpirando o calor da tarde.
Ao aproximar-se, olha-me directamente nos olhos, perscutando os meus pensamentos como que avaliando a minha índole. Parecendo confiar, pousa a sacola no chão e senta-se a meu lado. De dentro, tira um bocado de pão que vai mordiscando acompanhado de uns goles de água, enquanto olha profunda e atentamente o horizonte. Durante estes largos momentos nada diz, ora olhando o infinito ora olhando-me a mim.
Depois de terminar o lanche, pergunta-me:
- Para onde vais?
- A todo o lado e a sitio nenhum. Venho seguindo a estrada e parei aqui para admirar este sitio enquanto descanso.
- Não tens destino, portanto?
- Sim...é mais ou menos isso...
- E de onde vens?
- De todo o lado e de sitio nenhum...
- Não tens raízes, portanto?
- Sim...é mais ou menos isso...
- Vens sozinho?
- Sim.
- Sou como tu...um viajante. Mas tenho raízes...e tenho destino. Todos temos, mesmo que em alguma altura os deixemos de ver.
- Como assim?
- Algures nas nossas caminhadas, encontramo-nos tão distantes da nossa origem como do nosso destino que deixamos de os ver.
- E nessas alturas, como fazemos para não nos perdermos?
- Cada um de nós, nesses períodos de tempo em que deixamos de ver a origem e o destino da nossa viagem, encontra os seus pontos de referência. Sinais que nos indicam se nos mantemos na rota ou se nos afastamos dela!
- E como encontrar novos pontos de referência? - Perguntei eu aquele menino que parecia ter todas as respostas.
- Ao longo da minha viagem tenho guardado nesta sacola tudo aquilo que de alguma forma se distingue do resto. Depois, num mapa que vou desenhando à medida que avanço no meu caminho, marco os sitios onde os encontro. Consigo, assim, manter sempre uma trajectória clara e, se for preciso voltar atrás, consigo sempre reencontrar o meu caminho.
- E que guardas tu na sacola?
Olhou-me de lado, meio desconfiado. Depois puxou a sacola, ajeitou-a e abriu-a. Lá dentro vi muitos pequenos pontos de luz, brilhantes como um céu estrelado.
- Mas isso são... - retorqui.
- São... - Interrompeu-me como se quisesse impedir-me de pronunciar o resto da frase - E tu também tens os teus. É apenas uma questão de os guardares.
Aquele garoto, que vestia apenas umas jardineiras coçadas sobre a pele encardida pelo pó, parecia saber muito mais do que a idade lhe permitiria. A segurança com que me falava transmitia uma confiança própria de quem tem uma experiência de vida longa e variada. Falava como que suportado num vasto conhecimento adquirido ao longo de dezenas de anos de vida passados a viajar.
Ofereceu-me um naco de pão e água e recostou-se numa pedra. Inspirou profundamente e olhou novamente o horizonte. Por momentos não disse nada. Pousou os braços no chão e agarrou um punhado de terra, levando-a ao nariz. Ao cheirá-la, perguntou-me:
- Sabes como chamam a este vento quente que aqui sopra ao final da tarde?
- Não.
- Zéfiro...Diz-se que vem percorrendo as planícies desde o deserto e que se o escutarmos atentamente conseguimos ouvir as vozes daqueles por quem passou.
Calei-me e não escutando nada mais do que a folhagem empurrada pela brisa, perguntei:
- Consegues ouvir alguma coisa?
- Schhhhh... - disse-me, fechando os olhos - não é com os ouvidos que deves escutar.
Segui-o, fechando os olhos, e fiquei em silêncio. Comecei a ouvir um pequeno burburinho, como que de vozes tartamudeando, que a pouco e pouco se foi tornando mais nítido. E comecei então a perceber conversas soltas entre homens e mulheres, o ruído de crianças a brincar e o eco destes sons que ressoavam nas minhas orelhas. Eram diálogos absolutamente normais, conversas de rua como pessoas que se encontram e não querem ficar por um simples olá.
Entretanto, o menino tocou-me na mão e os murmúrios começaram a desvanecer-se. Perguntou-me então:
- O que ouviste?
- A Vida...O Mundo... - respondi-lhe.
- Parece que a lenda do Zéfiro tem algum fundamento, então. Na realidade, nem sempre os cinco sentidos são os que nos permitem perceber melhor...
- Sim...
Colocou a mão dentro da sacola e do seu interior retirou outra sacola exactamente igual, depositando-a nas minhas mãos.
- A ti falta-te apenas a sacola para os guardares. Tudo o resto de que precisas já o tens dentro de ti. Guarda dentro da sacola tudo o que é importante para ti para que não percas nada.
Estendendo-me a mão, desejou-me boa viagem e afastou-se lentamente, com o olhar posto no sol que se deitava no horizonte. Ainda o observei por um longo tempo, enquanto a sua silhueta se tornava mais pequena.
Inspirei uma vez mais o vento quente que sopra na seara. E foi a ultima vez que vi esse menino...

1 comment:

Sofia said...

Obrigado pel dica. Amanha vou ja arranjar uma sacola grande para começar a guardas as minhas!

Beijos