Thursday, September 30, 2010

Uma história... (cont. 5)

Passaram-se longos tempos em que Nahn não conseguiu sequer pensar, por muito remotamente que fosse, em estar com alguém. Para quem já tinha tantas dificuldades em se relacionar, um milímetro que fosse, abaixo da superficialidade futil das relações quotidianas, dos casos sem importância e dos encontros fortuitos, a sua primeira relação de compromisso foi um golpe duro na sua auto-estima e um verdadeiro terramoto que deitou por terra toda a estrutura de inter-relacionamentos, já de si tão frágil, que havia construído e que minou completamente a perspectiva que tinha sobre o compromisso.
Nahn não era uma menina diferente das outras. Também ela sonhava encontrar o alguém mágico, o encaixe perfeito para os seus projectos de vida, a pessoa fundamental para a concretização de tudo o que imaginara para o seu futuro. Nahn também idealizava o companheiro para uma vida a dois, a casa onde iria construir a sua própria familia e criar os seus filhos. Em que iria trabalhar, como queria desenvolver a sua paixão, como iriam ser os seus dias...enfim, Nahn também queria uma vida de sonho.
Foi preciso bastante tempo para que permitisse que alguém pudesse ter a oportunidade de fazer parte deste futuro imaginado. E então conheceu...

Wednesday, September 29, 2010

Uma história... (cont. 4)

Nahn levantou os olhos para o céu azul da noite e respirou fundo...houve duas pessoas que foram marcantes na sua vida.
Nethiel era um jovem adolescente, ambos eram quando se conheceram, bom rapaz, de uma familia tradicional. Dedicado a causas nobres, inteligente e dócil, era querido por todos na aldeia onde vivia. Era uma pessoa devota, empenhado na sua fé e por ela regia muitos aspectos da sua vida. Não era uma fé cega, mas tinha uma influência muito forte na forma como Nethiel vivia a sua vida. Fora educado pelos pais sob a mesma herança que estes haviam recebido dos seus. Uma formação severa e austera, com regras bastante rígidas, baseada em principios conservadores que não permitiam cedências ás tentações mais mundanas.
Na verdade, Nahn e Nethiel tinham muito pouco, ou nada mesmo, em comum. Onde Nahn pautava por uma enorme liberdade de espirito, postura descontraída e despreocupada, nunca pensando no momento seguinte, Nethiel contrapunha com uma forma de viver espartilhada em regras inflexíveis, uma conduta social irrepreensível e uma mentalidade extremamente precavida com o futuro. Nahn nunca soube explicar muito bem, a si própria, o que os unia...se é que algo a que se pudesse chamar um laço existia.
Durante os primeiros anos, tudo decorria com normalidade. Uma normalidade sem sobressaltos, monótona até, para um espirito inquieto como o de Nahn que constantemente procurava a alegria da agitação e da novidade...mas nessa tranquilidade a menina conseguiu encontrar alguma paz. Nethiel não era um exemplo de afectividade e carinho, mas tratava Nahn com respeito e consideração.
Com o correr dos meses, no entanto, a personalidade de Nethiel alterou-se. Na verdade, Nahn não sabia se se tinha alterado ou se finalmente se havia revelado. Nethiel começou a tornar-se controlador e possessivo, querendo sempre saber por onde Nahn tinha andado e o que tinha feito, com quem tinha estado e a que horas e o que tinham conversado. O que a principio se revelou uma leve mudança na sua forma de estar na relação, depressa se transformou numa imposição desagradável e omnipresente. Nethiel foi-se tornando cada vez mais duro e bruto com Nahn, cada vez mais desconfiado e agressivo...até que um dia excedeu os seus limites...e os de Nahn. Foi preciso que a situação se repetisse, mais do que uma vez, para Nahn se consciencializar de que não era aquele o caminho para o seu futuro.

Tuesday, September 28, 2010

Uma história... (cont. 3)

Nahn sempre se quis convencer de que era um espirito livre, jovem e descontraído, de tal modo que afrontadamente se recusava a fazer o que quer que fosse como mandam as regras. Mas, o seu raciocinio e os motivos que encontrou para moldar a sua forma de estar na vida, tornaram-na uma pessoa irresponsável, inconsequente e inconsciente. Nunca se preocupou em pensar nas consequências que as suas atitudes e opções pudessem vir a ter, nunca se preocupou com o resultado dessas consequências (para si e para os outros) e, acima de tudo, nunca assumiu a responsabilidade desses actos e decisões, optando por descartar, para os outros e para a vida, a culpa dos acontecimentos. Era-lhe mais fácil encontrar nos outros, nas atitudes dos outros e nas decisões dos outros a razão de as coisas terem acontecido do que assumir os eventuais erros que pudesse ter cometido.
Nahn não nasceu em berço de ouro. Nahn não foi estragada pela abundância e, apesar de não ter passado dificuldades, as coisas não lhe foram facilitadas. Os bens materiais que conseguiu foram conquistados à custa de muito esforço, algum sacrificio e muito trabalho. Seria de esperar que, tendo obtido tudo isso literalmente à custa do seu próprio suor, valorizasse o que de bom a vida lhe proporcionou. Mas era cega...a constante preocupação em proteger-se do Mundo e dos outros cobriu-lhe os olhos e anestesiou-lhe o coração. Nahn vivia uma vida adormecida...

Monday, September 27, 2010

Uma história... (cont. 2)

Esse espinho doloroso, camuflado no seu íntimo, soterrado e escondido sob uma pilha de outras recordações bem mais felizes e suportáveis, fazia sentir a sua ponta aguçada sempre que Nahn tentava analisar-se a si ou a uma qualquer situação da sua vida. Não admitindo a dor lancinante que isto lhe provocava, constantemente se desculpava com o cansaço que fisicamente a deixava de rastos e que mentalmente a impedia de pensar sequer em coisas muito mais simples. Aceitar este espinho era reconhecer uma fraqueza e isso Nahn não podia admitir...afinal era especial, não podia ter pontos fracos. Como se cada um de nós não tivesse os seus...
E era por tudo isto que se recusava a resolver o que tivesse para resolver, enterrando sempre a cabeça na areia e esperando que as coisas passassem ou se resolvessem por si. Por muito que tenha visto que esta atitude apenas levava a que as situações assumam proporções bastante maiores, mais graves e mais sensiveis de se resolver, nunca aprendeu esta lição.
Outra justificação habitual era a vontade de proteger os outros, de não os querer magoar mas, bem vistas as coisas, o maior medo de Nahn era sair ela mesma magoada. Preferia mentir, omitir ou disfarçar a realidade do que confrontar-se com a verdade nua e crua. A menina que em tempos corria inocente pelos campos, acabou por trazer uma série de dissabores a quase todos os que se tentaram aproximar dela.
Outra faceta da sua personalidade era constantemente auto-convencer-se do seu altruísmo. Nahn caracterizava-se como uma pessoa exocêntrica, sempre preocupada (e em primeiro lugar) com o bem estar dos outros. Fazia, segundo os seus ideais, tudo por tudo não só para que os outros estivessem bem mas também para lhes evitar qualquer tipo de sofrimento. Sobretudo, o tipo de sofrimento que ela própria queria a todo o custo evitar a si mesma. Mas na realidade, esta intenção benemérita era incompatível com uma outra característica.

Sunday, September 26, 2010

Uma história... (cont.)

Com o tempo Nahn foi crescendo. O seu corpo foi-se transformando no de uma mulher adulta, mas o seu espírito manteve-se jovem e ansiosamente livre. As responsabilidades começaram a surgir, primeiro com os estudos, depois com o trabalho.
Ao longo da sua vida, Nahn nunca teve dificuldade em fazer amigos. Era uma pessoa social, de trato fácil e sempre pronta para a diversão. Não deixando de esquecer as suas obrigações, estava sempre pronta para uma boa festa ou para sair com os amigos. A maior dificuldade de Nahn não estava em estabelecer o contacto...mas sim em criar a ligação...
À excepção dos amigos de infância, nascidos na mesma aldeia, muito raras foram as pessoas a quem permitiu entrar no seu pequeno mundo. Nahn tinha uma extrema dificuldade em se envolver com as pessoas, em se entregar sem medos ou reservas a uma relação...fosse de que tipo fosse. Todos nós já, em uma vez ou outra, fomos magoados por pessoas de quem gostavamos. Mas Nahn sentia-se especial...Nahn cria-se frágil de mais para se deixar magoar. Muito embora as suas histórias passadas fossem semelhantes a tantas outras, iguais às nossas, Nahn achava que as suas próprias continham um sofrimento maior, e de longe muito mais intenso e insuportável. Sentia-se muito mais injustiçada do que qualquer outra pessoa e acreditava que isso lhe dava o direito de manter entre si e os outros uma distância fria que não permitisse qualquer aproximação ou envolvimento...dos outros ou seu. Frequentemente, justificava esta atitude com a falta de genuinidade e pureza que "detectava" nas pessoas que a rodeavam, que elas somente se aproximavam com algum interesse dissimulado, com malícia ou intenção de intriga.
Na verdade, algo no seu passado impedia-a de confrontar-se consigo própria, de se conhecer a si mesma, de identificar os seus medos e receios e de os enfrentar. Em algum ponto da sua vida, algo aconteceu que lhe deixou uma marca indelével que provavelmente a iria acompanhar até ao ultimo dos seus dias.

Wednesday, September 22, 2010

Uma história...

Nahn Asle era uma menina...que nunca tinha saído da aldeia onde nasceu. Era um sitio pequeno onde todos se conheciam, quase familiar. Todos sabiam de tudo, ajudavam-se mutuamente, conheciam as suas casas e as dos outros.
Nahn era feliz aqui. Além de conhecer os cantos e recantos, estradas e caminhos, montes e vales em redor da sua casa, tinha uma quase total liberdade para sair de casa de manhã e voltar só à noite, passando o dia a correr, a saltar e a brincar. A liberdade era quase total porque, num meio pequeno as pessoas tendem a ser bastante conservadoras, tradicionalistas e gostam que os outros habitantes tenham a melhor opinião sobre a sua familia. Desta forma, eram-lhe impostas algumas regras, nomeadamente sobre os horários das refeições, os locais onde não podia ir (mas onde ia na mesma) e acima de tudo sobre o recolher a casa antes do sol se pôr.
Era feliz...muito feliz até. Tinha um grupo grande de amigos, todos gozando da mesma liberdade e tendo que obedecer ás mesmas regras, mas acima de tudo gostavam todos de fazer as mesmas coisas.
Nahn gostava de pensar em si mesma como um espírito livre e para quem as regras não passavam de imposições sem sentido, próprias de um meio pequeno como aquele em que vivia mas completamente inadequadas a uma personalidade incompatível com limitações que não as que quisesse impôr a si mesma. Os pais tentaram educá-la sob os mesmos principios que haviam recebido, eventualmente amenizados pelas diferenças entre as duas épocas, de obediência e respeito pelos outros e pelos mais velhos. Mas o que Nahn gostava mesmo era de correr pelos campos sem a companhia do relógio nem das regras sociais.
Não se podia dizer, ou pelo menos não era fácil pensá-lo convictamente, que Nahn era uma menina egoísta ou mimada. Na verdade, os seus progenitores, apesar de extremosos e carinhosos, aplicavam a sua lei com rigor e, nalgumas ocasiões, com alguma dureza. Mas mais do que explicarem à filha a razão da existência de tais regras e porque motivo as consideravam necessárias, impunham-lhas pela simples razão de ter sido assim que aprenderam com os seus pais.
Mais do que incutir esses ideais, conseguiram que Nahn crescesse a implicar com regras e a ter uma atitude de desprezo sempre que se via confrontada com elas. Em alguns momentos, terá mesmo agido com uma revolta imatura que culminava numa desobediência consciente, voluntária e propositada.

(continua)

Tuesday, September 21, 2010

Era uma vez...

"Primeiro pensei que era por graça, depois percebi que não era defeito...era feitio. Como uma pedra inanimada completamente indiferente ao sol que lhe toca na face, ao frio que lhe corta os lábios, ao vento que lhe despenteia os cabelos, à alegria que lhe arrepia a pele, à tristeza que lhe inunda os olhos...simplesmente incapaz de sentir o que quer que seja."

Sunday, September 19, 2010

Ambiguidades

As palavras são vagas...tal como a água, desprovidas de cheiro e de sabor. São como o vento...não as vemos, mas empurram-nos.
Enchem-nos a cabeça, confundem-nos o pensamento e ofuscam-nos com o seu brilho esplendoroso. Sentimo-las? Talvez...mas como nós queremos e não como elas são. As palavras não têm personalidade, não têm vida própria...são moles e maleáveis como o barro e cada um molda-as a seu gosto.
Não se pode...não se deve confiar nas palavras...talvez por isso se diz que as leva o vento. Porque não têm raízes, porque não se mantém firmes, porque não têm carácter. Porque se combinam umas com as outras e, alterando a sua ordem, muda-se o seu significado.
Como se, ao mudarmos de roupa, mudássemos de personalidade...Não. Ao mudarmos de roupa, não mudamos de personalidade e ao mudarmos de palavras não mudamos de personalidade...mas podemos camuflá-la ou disfarçá-la.
Acreditemos antes nas atitudes...porque essas, na maior parte das vezes, provêem do nosso intimo, sem controlo, sem consciência, sem disfarces. Elas sim, as atitudes, são o reflexo do nosso carácter, dos nossos principios e da força que temos para lhes sermos fiéis.

Thursday, September 02, 2010

Imagina

Imagina uma casa...grande, com sala, cozinha e quartos...vários quartos. Imagina um terreno à volta dessa casa...grande, relvado, com uma árvore e flores...imagina uma cerca...branca, de madeira, a toda a volta...imagina um passeio....de cimento, depois dessa cerca...imagina uma estrada...de alcatrão, a seguir a esse passeio...tudo isto é a minha vida.
Há carros que passam na estrada,sem parar...uns mais devagar, outros tão depressa que nem os distingo. Alguns desses carros param defronte à casa e os seus condutores pedem-me para estacionar no passeio, pois não vão demorar. E eu deixo.
Pessoas passam a pé, junto à cerca. Eu saio de casa, atravesso o quintal e converso com elas. Das dúzias e dúzias de pessoas que aqui passam todos os dias, convido poucas a passar o portão e a ficar pelo quintal. Podem gozar do meu relvado, apreciar e cheirar as flores do meu jardim, descansar na sombra da minha árvore.
Muito poucas, muito poucas mesmo, são as que convido a entrar em minha casa...e pelos dedos de uma mão se contam as que convido a lá ficar.
Um dia, estava a janela, e vi uma menina no passeio. Tinha um ar triste e cansado, os pés descalços sujos de virem de rojo pelo chão.
Saí de casa, atravessei o quintal e cheguei-me à cerca...perguntei-lhe o que tinha..."Estou triste, só e cansada" - respondeu-me.
Abri-lhe o pequeno portão da cerca, estendi-lhe a mão e convidei-a a entrar. Limpei-a, escovei-lhe os cabelos e massajei-lhe os pés feridos. Vesti-a, dei-lhe de comer e de beber. Conversei com ela, ouvi-a, escutei-a. Levei-a para o andar de cima, a um dos quartos, com a cama grande e as almofadas fofas. Ofereci-lhe um pijama e providenciei para que nada lhe faltasse.
Quando se deitou, disse-lhe: "És bem-vinda, podes ficar o tempo que quiseres. Se precisares de alguma coisa, estás à vontade para te servir...se não encontrares, apenas tens que pedir...aqui, nada te faltará". Não esboçou qualquer expressão, apenas um olhar incrédulo. Encostei a porta e deixei-a no quarto mais confortável da casa...o meu. Desci as escadas e fui para a sala, sentei-me no sofá e deixei-me divagar com os meus pensamentos...e ali adormeci.
De manhã, acordei com o sol a incidir em cheio na minha cara...esfreguei os olhos, espreguicei-me e estiquei-me todo. Quando levantei o tronco e olhei à minha volta, não quis acreditar no que estava a ver...

(continua)